A Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro na sessão solene realizada no dia 18 de janeiro de 1980, no auditório da Faculdade de Filosofia do Recife – FAFIRE, concedeu o título de acadêmico emérito aos presidentes da Academia Pernambucana de Letras, da Academia Olindense de Letras, da Academia Pernambucana de Medicina, da Academia de Artes e Letras de Pernambuco e da Academia Pernambucana de Ciências, respectivamente os acadêmicos Mauro Mota, Barreto Guimarães, Fernando Figueira, Ferreira dos Santos e Valter da Rosa Borges. Em discurso intitulado “Academia & Comunidade”, Valter da Rosa Borges discursou em nome dos homenageados.
ACADEMIA & COMUNIDADE
A Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro, num gesto altamente significativo, homenageia, com a concessão do título de acadêmico emérito, os presidentes da Academia Pernambucana de Letras, da Academia Olindense de Letras, da Academia Pernambucana de Medicina, da Academia de Artes e Letras de Pernambuco e da Academia Pernambucana de Ciências, respectivamente os acadêmicos Mauro Mota, Barreto Guimarães, Fernando Figueira, Ferreira dos Santos e Valter da Rosa Borges, em solenidade que não se exaure na própria homenagem, mas que simboliza, acima de tudo, a integração da intelectualidade pernambucana.
No decantado século das comunicações, nenhuma Academia desta natureza pode dar-se ao luxo de permanecer em obstinado isolacionismo, como um sistema fechado ou espécie de mosteiro intelectual, produzindo, exclusivamente, para o seu consumo. A vida é um incessante processo de permutas com a finalidade precípua de garantir a homeostase orgânica, na metabolização permanente da matéria-prima e experiência adquirida. Via de regra, as Academias literárias e científicas reúnem a nata dos mais expressivos valores culturais de uma comunidade. Por isto, mister se faz que elas funcionem como um sistema aborto, um laboratório experimental do espírito, sempre em busca de novas fórmulas e opções, objetivando o enriquecimento existencial da humanidade. Ninguém é solitário por vocação. A misantropia é um estado patológico da natureza humana. E disto, já se apercebera Aristóteles, quando asseverou:
“Não se pode imaginar um homem feliz na solidão, porque o homem nasceu para viver em comunidade”.
O acadêmico não pode repetir o equívoco de Narciso na obsessiva contemplação de si mesmo, escravo do próprio isolamento e da fascinação exclusivista do seu grêmio. O elitismo intelectual é um insidioso narcótico, capaz de alienar as melhores inteligências do contato direto com a realidade de sua época. A solidão obstinada, à semelhança de um poderoso psicotrópico, é, frequentemente, responsável por todas as fantasias e excentricidades de que são vítimas até as inteligências mais privilegiadas.
O acadêmico, assim, tem a indeclinável obrigação de ser intensamente contemporâneo, um dinâmico operário do progresso, comprometido, de maneira indissolúvel, com o destino do seu povo. Administrador e não simples depositário de parcela significativa do patrimônio cultural da humanidade, a ele compete aplicar, diligentemente, os talentos recebidos, atento à recomendação evangélica de que “a quem muito é dado, muito lhe é pedido”.
O homem não é mero produto da realidade, mas um transformador da realidade. E, também, um fazedor de realidades, construindo e construindo-se, numa febricitante inquietação artesanal, para se multiplicar em suas próprias obras. A sociedade humana não é apenas uma tentativa, como apregoava Nietzsche, mas o exercício e aprimoramento de uma genética espiritual, em permanente enriquecimento cromossômico, graças à atividade fecundante dos grandes gênios da humanidade. Porque a espécie humana não se perpetua apenas pela hereditariedade física, mas também pela continuidade metafísica da genealogia do conhecimento.
Na verdade, não se pode conceber a convivência acadêmica como um processo de mumificação intelectual, mas, sim, como oportunidade sempre renovada de desenvolvimento crescente da capacidade criadora, através do indispensável diálogo, num procedimento dialético altamente produtivo. Academiar-se não é acomodar-se, mas incomodar-se com as alternativas da realidade do seu tempo. Não há criação na inércia, mas nas crises e nos desequilíbrios, pois a vida é movimento, é mudança e o próprio êxtase do santo é resultado de uma intensa atividade espiritual.
É mister que o acadêmico seja dotado de um espirito universalista, capaz de interessar-se por todas as áreas do conhecimento humano. Isto não importa dizer que ele possua uma cultura enciclopédica, mas que, ao menos, revele um mínimo interesse autêntico por outros setores da atividade intelectual, além daquele a que se dedicou ou no qual se especializou. Aliás, a especialização é uma imposição de conteúdo pragmático e não uma necessidade espontânea do espírito humano, sempre ávido de crescimento em todos os níveis. Por isto, não mais se compreende, na era das comunicações, a vocação pelo intelectualismo monástico, a profissão do monólogo, o monopólio setorial do conhecimento.
Mais do que nunca, o estilo da vida moderna está a exigir das pessoas um permanente estado de alerta e uma aguçada sensibilidade crítica. Vivemos, intensamente, o sentimento e a experiência do transitório. Nada nos parece sólido e confiável, mas fluido, impermanente, duvidoso. Habitamos o século do descompromisso, da probabilidade, do indeterminismo, da relatividade. A epistemologia entra em colapso, pois a única certeza que o conhecimento científico nos dá é a incerteza do próprio conhecimento. Então, o homem, a contra gosto, começa a sentir a compulsão de se acostumar a conviver com a insegurança e pressente que a fé não é, fundamentalmente, um sistema de dogmas, mas uma atitude madura perante a perplexidade do existir. Viver se torna um ato de fé, pois a razão é apenas instrumento hábil para estabelecer relações pragmáticas com a realidade imediata e não para conhecê-la. A competência epistemológica do homem é, assim, limitada e a sua atividade jurisdicional está restrita, em última análise, ao próprio fenômeno humano. E, assim, ele compreende a inutilidade de dar ou procurar respostas, esmerando-se, ao contrário, no exercício de fazer perguntas adequadas, pois é nessa atitude de permanente questionamento, equivalente á dúvida metódica cartesiana, que ele se torna, cada vez mais, ciente e consciente da fascinante complexidade da vida. É esta consciência lúcida do mistério que faz da existência uma aventura sempre renovada que levou Albert Einstein, misto de cientista, filósofo e poeta, a asseverar: “O mais belo dos sentimentos que podemos experimentar é o do mistério. É a emoção fundamental que surge no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Aquele que não a conhece e que não mais consegue maravilhar-se, não mais assombrar-se, está praticamente morto, como uma vela apagada”. O assombro do cientista perante o mistério da vida corresponde ao alumbramento do poeta ante o impacto da beleza.
Corresponde, em outro nível, ao êxtase do santo, embriagado de Deus. A ciência é a arte do conhecimento provisório e a arte é a ciência instantânea da beleza. Só o homem medíocre é insensível ao processo de renovação da vida, de transformação de todas as coisas, porque, como bem o define Ingenieros, ele “só tem rotinas no cérebro e preconceitos no coração”.
O acadêmico, afeito ao estudo e à observação, de inteligência treinada e aguda sensibilidade, é uma importante testemunha do seu tempo. Ele participa dos impasses e das angústias de sua geração e sente, mais profundamente, o drama urbano da solidão, do anonimato desindividualizante, da massificação, em todos os níveis, na convivência diária das megalópoles, num processo, talvez irreversível, de entropia social e psicológica. Ele pressente, em clima de depressão, que o mero somatório do conhecimento científico e tecnológico, em vez de produzir libertação, constituí uma gradativa subtração da felicidade. E constata que o conhecimento e o controle do universo exterior não resolvem, por si só, os complexos problemas do espirito humano. Por isto, observa, impotente, a inversão teleológica dos valores, onde o homem, na alucinada conquista do mundo material, perdeu as coordenadas do seu próprio destino, passando a servir as coisas e não a servir-se das coisas. Tal constatação faz lembrar a oportuna advertência de Erich Fromm: “Fazemos máquinas que agem como homens e produzimos homens que agem como máquinas”. Esta, por certo, é a verdadeira idolatria, encontrável, infelizmente, em todos os tempos e lugares. Quando o homem presta culto e se submete a algo que ele mesmo construiu, seja uma ideia ou seja uma estátua, comete crime de idolatria. É um blasfemo da própria condição humana.
A sociedade, portanto, é o instrumento mais adequado para o homem desenvolver as suas potencialidades. E se ao contrário, ela mutila ou atrofia personalidades, a culpa não lhe cabe, mas, sim, aos próprios homens que ainda não sabem, adequadamente, conduzir-se em seu relacionamento recíproco. Sociedade e liberdade não são expressões antinômicas, mas a sua conciliação é um permanente desafio à inteligência e ao bom senso. Por isto, Krishnamurti enfatiza a necessidade de “ajudar o homem a ser livre e a compreender o problema do ajustamento; ajudá-lo a obedecer, sem ser escravo da sociedade… mantendo sempre aquele extraordinário espirito de liberdade”. O estado natural do homem é o de comunhão com o seu semelhante. Daí, porque, por mais paradoxal que pareça, ele prefere o conflito da vida social à estéril tranquilidade de um isolamento definitivo. Tinha razão, portanto, Espinoza quando asseverou que “nada existe mais útil ao homem do que o próprio homem”.
A Academia é uma das mais produtivas formas societárias, pois congrega, geralmente, os espíritos mais cultos, lúcidos e criativos da comunidade, favorecendo o intercâmbio permanente de ideias entre os seus membros. Contudo, é necessário que as Academias não realizem um trabalho isolado ou que apenas estabeleçam, entre si, relacionamentos formais e esporádicos. Creio, porém, que o encontro desta noite constitui, historicamente, o marco inicial de um programa integrado de ação acadêmica, resultando na ampliação das atividades culturais do nosso Estado.
Assim, ao encerrar este breve discurso, penso eu, em tempo hábil, quero parabenizar a Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro, na pessoa do seu dinâmico presidente, Dr. Nicolino Limongi, pelo êxito deste empreendimento e agradecer em meu nome pessoal e em nome de todos os homenageados os diplomas de acadêmicos eméritos com que fomos distinguidos.